Jess
Tradutora, noveleira, a neta que Nathalia Timberg ficou devendo para o universo.

Uma playlist nada sofredora

Querida Konbini e a desumanização que o capitalismo nos impõe



Na pandemia, ficou ainda mais evidente para mim o quanto a rotina é o que muitas vezes me segura e me impede de surtar ainda mais. A suposta segurança que ela nos traz é algo que sempre me fascinou, especialmente nos dias em que eu simplesmente saio dela. Hoje é um dia desses. São 10h30 da manhã, hora em que eu já costumo estar vestida e trabalhando, mas no momento estou de pijama e nem tomei minha xícara de café preto. Quando eu saio da rotina, as coisas viram de cabeça para baixo, e eu perco a sensação de que consigo controlar e de que pertenço a algo. E é aí que entra Querida Konbini, livro de Sayaka Murata, traduzido por Rita Kohl, que terminei de ler ontem e mexeu tanto comigo.

Gosto muito da suposta simplicidade que se esconde por trás do enredo do livro: é a história de Keiko, uma mulher de 36 anos, que trabalha em uma konbini, as famosas lojas de conveniência no Japão. Mesmo considerada "ultrapassada" para esse tipo de emprego temporário, ela continua lá, seu corpo faz parte da loja. Em diversas passagens do livro, ela relata como ouvia os sons da konbini o dia inteiro, como se se seu corpo fosse uma parte daquele lugar.

Por ainda trabalhar como temporária, não ser casada ou ter filhos, Keiko é vista como uma estranha por todos a sua volta. Desde criança, ela nunca pareceu querer se encaixar muito, e quando burlava regras sociais, era repreendida pela família e pelos professores. Alguns podem dizer que Querida Konbini é um livro sobre a sociedade rígida do Japão, mas eu discordo. Ele fala sobre questões universais, que perpassam o mundo ocidental, e no cerne delas reside o capitalismo.

Para além do evidente, da questão de gênero, de se casar e ter filhos, o que fez com que eu devorasse esse livro foi o fato de que o capitalismo é algo muito presente na história. Na simplicidade de Sayaka Murata reside um ponto chave dessa história: o fato de que o capitalismo nos engole, nos aliena a tal ponto que já não sabemos mais quem somos fora do nosso trabalho. Fora daquilo que é esperado, no caso produzir.

Em um determinado momento da história, Shiraha, um homem da mesma idade de Keiko, aparece na história. Ele é um outsider como ela, ou seja, nunca trabalhou, teve filhos ou fez "algo de útil à sociedade". Eles travam conversas muito interessante, nas quais Shiraha nos mostra a crueldade do mundo capitalista. Usando a metáfora dos tempos antigos, ele aponta que quem não é útil para a aldeia precisa ser isolado. Precisa ser destruído. Isso parece uma ironia, Shihara está sempre exaltado, mas suas palavras têm um fundo de verdade muito tenso.

Tenho pensado muito nas questões de trabalho durante a pandemia, principalmente agora no ano dois. No ano passado, eu trabalhei muito menos do que agora, e tinha a sensação de que era inútil o tempo inteiro. Olhando meus registros do One Second Everyday, um aplicativo em que você registra seu dia em um segundo, em forma de vídeo, tive a sensação de que eu era mais feliz, de que aproveitava mais meu tempo livre. A sensação, agora, é de que tenho tudo menos tempo. O trabalho, por mais que eu o ame, me aliena.

Como Keiko, também sou uma espécie de temporária. Não tenho direitos trabalhistas assegurados, e a vida de trabalhar em casa sempre foi minha realidade. O que a pandemia fez foi escancarar algumas questões. Uma delas tem a ver com a temida pergunta: "Quem sou eu fora do trabalho?" E, sinceramente, não tenho uma resposta exatamente pronta para isso. Fora do trabalho, faço coisas que, indiretamente, tem a ver com ele. Edito textos, vejo filmes e leio. São atividades que também estão muito presentes no meu trabalho remunerado. Talvez por isso mesmo eu me sinta em looping no meu horário de lazer. Ver filmes se tornou uma tarefa difícil, já que meu volume de trabalho cresceu muito. Chega uma hora em que só quero fechar os olhos e não ver uma imagem animada diante de mim. Então, como Keiko, também ouço os sons da minha própria konbini depois que fecho o computador. 

O capitalismo nos empurra para a desumanização, e acredito que o final de Querida Konbini ilustre bem isso. Como fugir dele? Se ele está presente nas pequenas coisas do dia a dia, em nossos desejos mais primitivos, em tudo? Existe um ensaio maravilhoso que li há muito tempo, chama-se 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary. Nele, ele defende que o último estágio a ser atingido pelo capitalismo é tirar nosso sono. O sono é um dos poucos momentos em que não somos produtivos, úteis. Sendo assim, para atingir o mais alto patamar de produção, dormimos cada vez menos. E, nossa, como é verdade! Sabe aquele papo "o que você faz da meia-noite até às seis da manhã?" É um pouco isso. 

Enquanto não somos produtivos, é fácil sermos descartados. Keiko só percebe sua função no mundo ligada à konbini. Às vezes sinto que estou chegando lá. Tento lutar contra a desumanização, mas existe algo muito maior diante de mim. Recentemente, assisti a Donnie Darko, um filme que tive que revisar para a MUBI. E ele me fez pensar em uma série de coisas, mas principalmente no fim do mundo. O que estou fazendo enquanto o mundo está acabando diante de mim? Produzindo algo que vai distrair outras pessoas, mas que me desgasta e retira um pouco de mim a cada dia. Por isso, como Keiko, preciso encontrar um sentido naquilo que faço. A existência por si só não faz sentido, e isso é triste demais de se constatar.

Querida Konbini foi meu primeiro livro do leste asiático da vida. Não poderia ter sido uma escolha mais acertada, ainda que intuitiva. Ou será que não foi? Tenho conhecido autores fora do que costumo ler por meio de grupos e algumas pessoas que acompanho na internet. Com 150 páginas, Sayaka Murata dá um soco bem gostoso no meio do nosso rosto. Enquanto minha gata lambe meu rosto e vou preparar meu café tardio, percebo a beleza que existe em sair da minha rotina planejada. O quanto é preciso fazer isso para relembrarmos que somos pessoas, não máquinas. É um dos maiores desafios de ser uma pessoa é perceber seu valor fora da produção.

Comentários

  1. Eu estava escrevendo textos para um futuro blog no caderno ontem (um pouco TB por estar cansada de olhar pra telas o tempo todo) e um dos textos era exatamente sobre trabalho. Gente, parece que esses temas estão nos envolvendo, como o ar em torno da gente!)
    Mas não vou contar mais porque quero criar esse blog e quero que você leis o texto hehehe
    Beijinhos friduchianos

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