Jess
Tradutora, noveleira, a neta que Nathalia Timberg ficou devendo para o universo.

Uma playlist nada sofredora

A insustentável leveza do ser: uma releitura



Enquanto espero o começo da gravação sobre A Insustentável Leveza do Ser, para o Querido Clássico, me dou ao luxo de escrever sobre a releitura desse livro que mexeu tanto comigo. Não esperem uma resenha com dados sobre a invasão da Checoslováquia, isso vai ficar para nosso podcast mesmo. A ideia aqui é falar um pouco sobre essa obra do Milan Kundera de uma forma mais sentimental.

Li esse livro em 2017, eu acho. Naquela época, nem sonhava em estar no Querido Clássico com a Mia. A coincidência é que foi ela quem me indicou muito A Insustentável, em uma época em que mal nos conhecíamos. Que engraçado, sabe, porque ela parecia me conhecer muito bem, porque essa obra nunca mais saiu da minha cabeça desde que a li.

A premissa de A Insustentável é falar sobre a leveza e o peso da vida por meio de quatro personagens: Teresa, Tomas, Franz e Sabina. Cada um deles representa uma forma de olhar para a vida. Alguns a enxergam com mais ou menos peso, depende da situação. À medida que os acontecimentos da trama se desenrolam, a gente se aproxima cada vez mais do entendimento do título dessa obra. É insustentável a leveza porque o peso da vida nos atinge de uma forma ou de outra. Tudo o que fazemos, nossas atitudes, são guiadas por essa percepção.

A leveza e o peso sempre foram questões para mim, ainda que eu não soubesse nomeá-las assim. Um dia, minha terapeuta me perguntou quais eram minhas lembranças de infância. Chocada, eu disse a ela que nenhuma. Eu simplesmente não tinha lembranças dessa época supostamente leve da nossa vida. Isso porque minha infância foi cheia de pesos e fardos. A sombra do abandono paterno sempre foi algo que me impediu de aproveitar a leveza dessa fase. Até hoje me pergunto que tipo de pessoa eu seria se isso não tivesse me acontecido.

Por ter vivido situações tão duras desde cedo, acho que a vida me preparou para ter uma visão mais pessimista das coisas. Para mim, é tudo peso. Até brincadeiras carregam um peso e podem me machucar. Em um trecho em que descreve a personagem Teresa, Milan Kundera diz que ela era séria demais, que era tudo um grande peso para ela. Ela queria ser anacrônica e não conseguia. E essa sou eu todinha. Os sofrimentos de Teresa são pesados demais para serem apagados no passado. Os meus também.

Falo do abandono paternal porque a pandemia me trouxe de volta à essa época. No momento em que escrevo este texto, meu pai está internado com COVID-19. Ele foi entubado, e eu soube disso por meio de parentes com quem eu não conversava há mais de 15 anos. Foi tudo muito estranho. Reli A Insustentável com essa notícia em mente, com a ideia de que aquela parte tão pesada, que eu havia lutado tanto para esquecer, estava de volta. Não havia nada que eu pudesse fazer para controlar.

Releituras são uma coisa engraçada, você não sabe o que sentirá. Eu me senti muito abraçada pelas angústias daqueles personagens. Embora não se fale sobre pandemia, a invasão da Checoslováquia é tratada como um trauma coletivo. O que aconteceu em Praga guia os quatro personagens, digamos assim. Trazendo a perspectiva para 2021, como não ser guiada pela pandemia, não é? Ela definiu nossas relações, a ausência delas, a solidão, a forma como lidamos com nosso espaço. É um trauma coletivo também. Não sabemos quais serão as cicatrizes a longo prazo, mas cada pessoa, neste momento, está lidando da sua forma. Processando seu trauma.

Como eu disse no texto anterior, sobre Fruto Proibido, há muito que eu não me permitia me sentir tão feliz. Hoje eu digo que, desde que soube sobre meu pai, eu jamais tinha me permitido revisitar meus traumas com tamanha força. No entanto, ao contrário de outros tempos, hoje sinto que consigo me deixar sentir, da raiva à tristeza, do choro que vem engasgado na garganta. É difícil processar 15 anos em três semanas.

Acho que, por isso mesmo, um dos personagens que mais admiro em A Insustentável é Sabina. De todos eles, é ela quem tem mais consciência, ou chega mais perto, da leveza. Ela nunca se contentou muito com regras, desde as primeiras cenas, ela, uma pintora, já questionava a forma como diziam para que ela pintasse. Aquela pintura chapada, digamos assim, do realismo soviético. Sabina vive sua vida como uma pluma, mas percebemos que aquilo foi difícil para ela. Então Kundera nos mostra que, independentemente das nossas escolhas, a vida sempre nos aperta aqui ou ali.

Em uma pandemia, talvez o nível de teste ao qual estamos sendo submetidos, principalmente aqui no Brasil, beire qualquer coisa escrita nesse livro. De alguma forma, aquela Praga da história sobreviveu. Tento me dizer que isso também nos acontecerá. Sobreviveremos com cicatrizes, talvez com mais conhecimento do que realmente seja a vida. E, para mim, a vida é um sopro. Isso nunca foi tão real. Dentro de casa, tento fugir da ideia de que estou sobrevivendo, e não vivendo. No entanto, o viver vai além de sairmos de casa, socializarmos. Viver é estar conosco sempre, nos respeitar. Nunca uma situação nos exigiu tantas coisas ao mesmo tempo.

Nestas três semanas, entre altos e baixos, descobri que algumas pessoas estavam por perto, mesmo sem estar. Uma delas foi a velha. Entre mensagens tão carinhosas, a dela foi uma das que mais me deixou emocionada. Quem me conhece sabe como minhas questões paternas são difíceis, de como eu tento não conversar muito sobre elas. Então quando eu escolhi contar a ela pelo menos um pouco do que está aqui neste texto, senti como se estivesse me expondo demais. Mas, não, afinal somos amigas, como ela mesma disse. É nessa amizade que encontrei parte das forças para aguentar tudo isso.

Sobre o Kundera, apenas leiam A Insustentável Leveza do Ser. É um livro fluido, de poucas páginas, mas que nos arrebata pelo poder de ainda nos dizer tanto em 2021, sendo que ele foi lançado em 1982. É como se a gente estivesse no mito do eterno retorno, algo no qual eu superacredito. Estou vivendo meu mito do eterno retorno agora.

Comentários

Formulário de Contacto