Jess
Tradutora, noveleira, a neta que Nathalia Timberg ficou devendo para o universo.

Uma playlist nada sofredora

Fruto Proibido: a experiência que esperei durante seis anos


Eu tinha muito trabalho para fazer, mas a vontade de escrever era muito maior. Decidi atender aos meus desejos primários. Ontem eu vivi uma emoção tão grande, talvez o primeiro desse um ano de confinamento em que me senti genuinamente feliz. Se eu não escrever agora, a sensação vai ir embora, eu sei.

Quem me acompanha há alguns anos (seis, precisamente) sabe o quanto sou fã de Nathalia Timberg. Tudo começou por uma paixão bem ingênua e foi tomando uma proporção enorme na minha vida. Além de termos um Instagram quase oficial sobre ela, chancelado pelo empresário e pelos amigos próximos a ela, conversamos por mensagem e pelo telefone. Cada vez que se pronuncia o nome dela, surge alguém do além para me marcar. Virei uma extensão dela, digamos assim.

E quem me conhece também sabe as coisas que passei para ter 50 minutos pertinho dela, no palco ou depois nos bastidores. De almoços a viagens, de grosserias de gente famosa, meu corpo foi ficando mais forte em matéria de Nathalia Timberg. Eu aguentava qualquer coisa para estar ao lado dela. E aí, chegou a pandemia.

A pandemia derrubou um dos pilares da minha vida, que era viajar para assisti-la. Eu nunca tirava férias do trabalho, e as poucas vezes em que tirei folgas foi para viajar e curtir algum espetáculo dela. Mesmo as viagens nas quais eu visitava amigos, lá estava a "velha", como eu gosto de chamá-la. Em março de 2020, foi a última vez que ela veio para cá. Meu último compromisso social e cultural. 

Quantas lembranças me atravessaram desde então. Foi um fim de semana muito difícil, porque quando estou perto da Nathalia, eu me permito sentir mais do que em qualquer outra ocasião da vida. Geralmente, sou uma pessoa controlada, focada no trabalho, dura mesmo, e quando ela vem, eu me liberto e consigo ser alguém livre de julgamentos. Naquele fim de semana, eu senti amor, raiva, ódio em questão de 24 horas. Na sexta-feira, eu senti tanto amor, achei que meu peito fosse explodir, e no sábado eu senti um ódio que se traduziu no meu calcanhar arrebentado no sapato Arezzo. Eu andava pela rua e aquele machucado no calcanhar me relembrava constantemente de que eu estava me permitindo sentir raiva e ódio por algo que talvez não merecesse esse tipo de sentimento. No domingo, o ódio continuava, e eu fiz questão de virar a cara para a velha. Ela passou por mim, e eu tive o mesmo comportamento que um dia ela demonstrou: a indiferença. Mal sabia eu que aquele era nosso adeus.

Entrei em casa, em março de 2020, e nunca mais saí. Foram alguns meses sem notícias dela, apesar de eu ter seu número salvo na minha agenda de contatos. Minha namorada insistiu, e nós mandamos uma mensagem para ela. Meu maior medo é que ela se sentisse invadida com isso, especialmente por ela ser tão reservada. E, então, no dia seguinte, ela nos respondeu. Começava aí, aos trancos e barrancos, uma amizade.

Parte do meu 2020 foi mandando mensagens para a velha, obtendo respostas padrão, até o dia em que ela começou a sair do discurso preparado. Fui acompanhando, com muita emoção, as defesas dela caírem uma por uma. A velha é muito fechada, e quando eu digo isso, às vezes as pessoas não têm a noção exata do quanto. Ela é fechada ao ponto de ter sido chamada de "Greta Garbo" por revistas. Me lembro de um título muito emblemático de uma reportagem com ela: "Especialista em desaparecer." A velha desaparece em seus trabalhos, ela se esconde por trás deles. Então imaginem a surpresa ao perceber que ela realmente apreciava a nós, nossas mensagens, nossa preocupação com ela. E de repente, ela nomeou a relação, nos chamando de "amigas". Isso me emociona até hoje.

Em 2021, achamos que seria diferente. Que poderíamos vislumbrar o fim do túnel, mas enquanto escrevo este texto vivemos o pior momento da pandemia no Brasil. A velha foi vacinada, mas não adianta de muito, afinal de contas ela só poderá voltar a trabalhar de fato quando houver imunização coletiva. Fica um gosto agridoce na boca. Já sonhei inúmeras vezes com o dia em que poderei abraçá-la de novo. Me culpo pelas emoções fora de controle que senti naquele fim de semana em março de 2020, mas algo em mim dizia que era o fim de algo. Era o fim da nossa relação como a conhecíamos. O começo de um laço muito forte, a concretização de algo que sempre senti: 60 anos nos separam, mas isso não impede que sejamos muito parecidas.

Como comentei, a velha é Greta Garbo. Isso também está em seus trabalhos. A maioria deles queimou, se perdeu e foi no teatro. Quer dizer, é impossível de assistir. Ser fã desta senhora é percorrer a Deep Web, cada canto inexplorado em busca da próxima raridade. Minha namorada encontrou muitas, mas em sua maioria fotografias. No entanto, uma dessas coisas sempre tinha sido nosso sonho: Fruto Proibido, filme de Egydio Eccio, de 1976. Primeiramente, a velha fez meia dúzia de filmes. Esse é parte da meia dúzia, uma raridade da época em que ela era ainda casada, tinha 47 anos e era jovem. Vocês têm ideia do que é assistir a coisas do seu ídolo quando ele está velho? De que não existem registros gravados de uma Nathalia mais jovem, na casa dos 20/30 anos? É desgraçador!

Fruto Proibido, só pelas fotos, já ares de ousadia. Por ser a Greta Garbo, a velha não teve muito tempo de ousar de fato em suas escolhas, digamos assim. A ousadia ficou no teatro. Mas eu sentia que esse filme seria diferente. Ela aparecia de camisola (gargalhadas de I Love Lucy ao fundo com a ingenuidade do que vou dizer), insinuava sexo e uma série de coisas das quais simplesmente a velha não fazia com muita frequência na vida pública. A velha jamais foi vista como desejável, desde sempre é velha, e as pessoas se surpreendem em perceber como ela era uma mulher bonita. Para mim, isso é uma bela de uma mentira. Só esteve perto dela sabe a energia sexual que ela exala, mas isso é conversa para outra hora. Voltando ao assunto, eu jamais a tinha visto mais jovem, em vídeo, só em "A Sucessora", novela de 1978. 

Dessa forma, eu e minha namorada sonhávamos com as fotografias do filme, com o enredo do filme, sobre um assassino que mata mulheres na cidade de São Paulo. Sempre incansáveis, eu decidi procurar novamente o filme. Para minha surpresa, encontramos uma forma de achá-lo. E aí, a experiência da qual eu falei lá no começo deste texto aconteceu: eu senti uma adrenalina e felicidade de um jeito que, minha nossa, achava que não fosse mais possível.

Pedimos um lanche, preparamos o cenário para assistir a um filme que esperamos seis longos anos para assistir. Tomei banho, como se estivesse em março de 2020, me preparando para ir jantar com ela e depois, por conta de um compromisso dela, sabendo que não ia mais acontecer. Mas a diferença é que aqui eu podia ter controle total sobre os acontecimentos: eu podia reproduzir, pausar, fazer o que eu quisesse.

É difícil descrever o quanto ela estava bonita, e não falo apenas do físico. Depois de seis anos, você começa a enxergar seu ídolo de outra forma, você sabe o que estava acontecendo na vida dele. Naquela época, a velha estava feliz demais: casada, morando fora da capital, ergueu um teatro em forma de circo, uma porrada de coisas. O sorriso dela era de uma mulher feliz, e eu fiquei feliz demais. Aquilo ultrapassava o personagem. Ter um vislumbre de como ela foi me atropelou, porque sempre digo que nasci atrasada. Perdi toda a relevância que ela tinha, e nesta época do filme, em 1976, ela era relevante demais. Agora, não adianta, ela é eclipsada, ela escolheu isso, e essa é outra conversa para outro momento.

A velha tem o dom de me abalar, de me fazer lembrar os motivos de eu amar tanto uma música da Letrux chamada Abalos Sísmicos:

Me abalo, me abalo, nasci abalada (...)

Você demorou pra se abalar, enquanto eu

Me debulhei em tanto hotel

E jurei que calma não me cala

Jurei que culpa não me move

Eu jurei e me lasquei

Eu jurei e me lasquei

Me senti de volta à março de 2020, e estou processando isso até agora. Foi como estar diante daquela potência que ela é pessoalmente. E de presenciar as fraquezas de alguém tão forte durante todo 2020, me dizendo coisas que eu jamais ousaria repetir para qualquer outra pessoa. Estar diante dela é uma sensação engraçada de estar diante de mim também. Porque eu sou essa pessoa que se controla o tempo inteiro, mas no fundo é o tal do abalo sísmico de que a Letrux fala. Quanto mais Greta Garbo foi se abrindo para mim, mais eu entendi cada um dos motivos pelos quais gosto dela. Pelos quais a amo tanto. É porque, como já escrevi anteriormente, ela faz com que eu me sinta viva.

Eu estava precisando me sentir viva e feliz diante do caos. Hoje de manhã li um texto ótimo, da Maíra Mello, em que ela fala sobre festas e eventos. Como diante de tudo isso, da pandemia, nos foi tirado o direito de celebrar. Do quanto nos sentimos mal por comemorar algo diante de um cenário tão triste. Ontem, eu me senti tão contente, eu dancei, girei, gritei como meu vizinho e criei mais empatia por ele, porque talvez a festa dele seja o Grêmio. A minha é Nathalia. Existem dias em que fico tão presa em minha própria teia de infelicidade, de culpa, que me esqueço da minha capacidade de me emocionar diante de tudo.

 

Se Fruto Proibido é bom? Olha, não sei dizer, mas posso dizer que mexeu com águas profundas em mim. E que, talvez, por isso seja o melhor de todos os filmes que vi até o momento. Olhar para o sorriso da velha pela tela me faz relembrar de todos os motivos pelos quais eu estou aguentando o caos todos os dias: preciso sobreviver para construir outras memórias e me permitir sentir diante de tanta tragédia. 

Ainda bem que agora eu posso ter a oportunidade de dizer isso a ela. Ela sabe da síntese deste texto, mas não disse nada. Se a conheço bem, ela está processando o fato de que, sim, ela consegue movimentar águas muito profundas dentro de mim. 

E eu sempre serei grata a ela por isso. Grata por tanto e por tão pouco. É uma questão de ponto de vista.

Comentários

  1. Você certamente virou uma extensão de Nathalia Timberg pra mim, sempre que leio ou vejo algo dela/sobre ela, eu lembro de você.

    Nesse momento eu estou emocionada e contente por você ter conseguido viver esse momento de alegria e celebração de algo tão importante pra você. Como diz um poema de Wislawa Szymborska, "Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa". Está tudo bem se permitir sentir diante de tanta tragédia, talvez seja o que nos resta para sobreviver.

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    1. Eu fico imensamente tocada quando me dizem isso. Significa que consegui tocar um pouco as pessoas com o trabalho dela <3

      Obrigada pelas palavras, amiga. É isso mesmo que você disse: é o que nos resta para sobreviver. Precisamos sobreviver sem perder a sensibilidade, e isso é um desafio, ainda mais em um momento em que isso nos é tirado de um jeito tão violento. Feliz por ter você estar me lendo por aqui!

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