Jess
Tradutora, noveleira, a neta que Nathalia Timberg ficou devendo para o universo.

Uma playlist nada sofredora

Sobre revisar o trabalho alheio


Fiquei na dúvida de como começar por aqui, especialmente por ser alguém que cria tantos blogs e acaba os abandonando. A justificativa é quase a mesma: começo a sentir que estou me expondo demais e decido sumir. Mas quem, hoje, nessa internet de Meu Deus não se expõe, não é mesmo? Sou mais uma entre tantas pessoas.

Talvez seja uma boa ideia começar com um assunto que tem tomado minha vida nos últimos tempos: a revisão. Desde novembro do ano passado, eu passei a revisar filmes e séries com mais frequência. Tudo começou quando eu estava, provavelmente, no mês mais caótico da minha vida. Ficamos quatro meses sem cozinha, com um colchão na sala, tentando equilibrar os pratos, que eram lavados na pia. Naquela época, uma pessoa com quem eu trabalho há muitos anos me propôs a revisar uma série para uma plataforma de streaming. Desesperada e sempre com medo de ficar sem dinheiro, aceitei.

Para minha surpresa, foi incrível. Gostei muito de revisar, era um drama coreano de 16 episódios. O que não foi muito legal foi ter virado algumas noites para conseguir entregar. Eu fazia isso porque achava que não tinha cacife para acordar bem cedo, revisar e enviar o episódio, que era para o mesmo dia. Spoiler: ela tinha cacife.

Quando você revisa o trabalho de outra pessoa, muitas questões surgem. A primeira, e mais importante delas, é a empatia. Alguém empregou seu tempo para tornar aquilo possível. Dessa forma, você precisa revisar com empatia. Ter empatia é entender as falhas do tradutor, melhorar sempre que possível, mas sem perder o estilo dele. Parece fácil, mas é muito difícil. Ser empático em um mundo que nos engole, que urge com prazos curtíssimos é uma tarefa hercúlea.

Como uma pessoa ansiosa, a segunda questão que se coloca na revisão é que você "assume" o papel daquele que muitos tradutores ainda enxergam como carrascos. Você veste a carapuça preta e começa a decapitar o texto do tradutor. Isso não é verdade. É preciso demais desconstruir essa ideia de superioridade. Revisar me possibilitou estar na pele daquelas pessoas a quem eu tanto temia e ao mesmo tempo admirava. É uma experiência muito maluca.

Antigamente, eu tinha um medo irreal dos meus revisores. Eu só ficava esperando a janela do Skype subir com uma reclamação. Uma vez, recebi um feedback bastante difícil. O ano era 2019, o burnout estava batendo com tudo, e aquele feedback me derrubou. Talvez não tenha sido dado da melhor forma possível. Me machucou muito ler aquelas críticas colocadas de uma forma tão insensível. Por isso, minha cabeça criou um medo irreal daqueles que me revisavam. Depois, tive uma experiência incrível com uma revisora que me ajudou muito. Aos poucos, fui incorporando uma certa confiança.

Hoje tento me espelhar nessa pessoa que me ajudou. Até que tem dado certo. É engraçado perceber que as pessoas carregam os mesmos medos que vocês. Conversei com vários tradutores, em projetos diferentes, e todos eles carregam um medo irreal de falhar. O que posso dizer? Fracassar é uma grande questão na minha vida também. Trocar experiências com essas pessoas me ajuda a tentar normalizar o erro.

Nunca vou me esquecer de uma tradutora que estava no meio de um burnout durante um projeto. Ela teve que abandoná-lo. A todo momento, ela me pedia desculpas. Eu só conseguia me lembrar de inúmeras vezes em que pedi desculpas mentalmente aos meus revisores, porque o trabalho só podia estar ruim. Não estava. Nem o da tradutora que teve o burnout. No entanto, a tendência é que a gente se achincalhe sem parar por conta de erros que, muitas vezes, estão fora do nosso controle. Por exemplo, erros de consistência, de não ter o contexto total em mãos. Isso acontece demais. E está tudo bem.

No mês passado, eu me candidatei a uma vaga no MUBI. Se você é cinéfilo, sabe que essa plataforma exibe vários filmes alternativos e cults. É uma Netflix da velharia, digamos assim. No fim, não consegui a vaga, mas eles criaram um cargo para mim, de tão impressionados que ficaram com meu currículo. Agora sou revisora de legendas para eles. Tudo o que entrar no catálogo (ou quase tudo) passará pela minha revisão. Isso é tão surreal! Primeiramente por ser um sonho antigo. Em 2020, tinha mandado currículo para a plataforma, mas eles não estavam contratando. Quase um ano depois o universo me aprontou essa. Quem gosta de cinema sonha em trabalhar com o tipo de filme que gosta, mas isso é quase uma utopia. E agora estamos aí, revisando filmes com os quais me identifico.

O universo nos dá aquilo que podemos carregar naquele momento. Certamente, em 2020, eu não estava preparada para assumir um cargo assim, muito porque não tinha desenvolvido um pouquinho de confiança que fosse para revisar. Agora minha confiança não continua nos 100%, mas está um pouco maior. Até porque se você confia 100% no seu taco, você não liga o desconfiômetro, a melhor qualidade de um revisor.

Não sei quanto tempo todo esse positivismo vai durar, visto que minha mente me sabota e minha terapeuta saiu de férias. Mas cá estou eu, depois de terminar uma série sobre lendas coreanas de 16 episódios, me sentindo muito bem. Poder perceber que você dá conta de não trabalhar a noite inteira, em um ritmo aceitável, cinco horas por dia, é uma vitória. Aquela Jessica que ia dormir quatro horas da manhã agradece.

Comentários

  1. Que incrível saber que você está trabalhando como revisora de legendas para o Mubi! Estou feliz por você <3 o cargo parece mesmo um tipo de sonho a alcançar pra gente que gosta das velharias e trabalha com tradução/revisão e afins (e me avise se vagas surgirem nesse meio, por favor! haha). Muito bonito o que você comentou sobre revisão precisar estar próxima da empatia, isso faz muito sentido pra mim.

    Foi um bom respiro ter descoberto que você (re)começou um blog.

    Até mais, Jess.

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